terça-feira, 22 de maio de 2012

Sobre homens feitos de ferro e de flor



“Mas existe nesta terra
muito homem de valor
que é bravo sem matar gente
mas não teme o matador
que gosta de sua gente
e que luta a seu favor
como Edinaldo Filgueira*
feito de ferro e flor”


Serra do Mel é uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Norte, uma terra onde muitas leis apenas estão nos livros e papeis, e que a realidade não é crível.
Fruto de um projeto de reforma agrária, a cidade foi planejada com 23 agrovilas, projeto baseado nos moshav israelenses. Cada agrovila possui um nome de um estado brasileiro, e o centro administrativo está nas vilas de Brasília e do Rio Grande do Norte, hoje conurbadas.
Uma cidade em que a democracia é apenas uma ilusão. Uma cidade em que a única torre de telefonia é desligada a mando dos poderosos conforme o seu interesse. Uma cidade em que seus habitantes não escolhem democraticamente os seus governantes. Uma cidade em que o coronelismo se espelha no número de eleitores, dois mil votantes a mais que habitantes, com ônibus transportando desconhecidos dos locais. Uma cidade em que é proibido andar de capacetes em motocicletas, em face ao crime organizado e constante ameaça de pistoleiros.
Edinaldo Filgueira era um dos colonos de Serra do Mel, e sua batalha era contra a opressão e o sistema coronelista local. Foi o fundador e editor do primeiro jornal da cidade, também foi o homem que levou o acesso a internet para Serra do Mel, tanto o provedor de acesso, quanto a lan house da pequena cidade.
Com muito suor conseguiu se formar em administração de empresas, viajando 60km todas as noites após um dia de trabalho. Mas Edinaldo era incansável, era o organizador independente que tocava grupos de teatros, concursos de canções, mostras folclóricas de boi de reis.
Ednaldo, antes de tudo, acreditava na informação como forma de libertação da humanidade. Acreditava que o conhecimento e a comunicação livres eram as armas para destruir os grilhões. Edinaldo era blogueiro, e foi assassinado ao questionar a população através de uma enquete em seu blogue sobre a educação pública de Serra do Mel. Ameaçado, retirou a enquete do ar – mas a sua vida já estava encomendada a um grupo de pistoleiros, já perseguidos pela polícia na operação “matadores de aluguel”. Sua vida foi ceifada em frente de seu pequeno comércio, um dia após colocar na web a enquete, sem direito à defesa, de maneira covarde. A loja de Edinaldo ficava a apenas 50m da delegacia de polícia, mas nada foi feito em sua defesa.
Edinaldo foi morto quando concluía a edição 51 de seu jornal. Resgatamos o material inconcluso, escrevemos alguma homenagem, e entregamos ao povo de Serra do Mel.Esta edição do jornal pode ser lida aqui. Edinaldo conseguiu que a edição 51 do Jornal o Serrano fosse distribuída, mas Edinaldo nunca poderá ser substituído.
Que Edinaldo nunca seja esquecido, calado, que a sua voz sempre ecoe. Faltam palavras para este que escreve sobre a tristeza amarga de ver uma pessoa simples, humilde, lutadora, ser morta. Mas não faltará trabalho, nem vontade de lutar por justiça. O prefeito de Serra do Mel é indiciado como autor intelectual do crime, e entre os matadores presos, três são parentes do prefeito. Somos frágeis, somos humanos, mas somos muitos. Os poderosos não poderão dar conta de todos.
*Poema escrito por Ferreira Gullar para homenagear o líder camponês Gregório Bezerra, lido durante a entrega dos jornais em Serra do Mel como parte das homenagens a Edinaldo Filgueira. (17/12/2011)

Edinaldo Filgueira: Sobre tubarões e sobre homens



Originalmente publicado no Diário de Natal, no dia 27/12/2011

Entrevista >> Lázaro Amaro – Advogado
“Caso despertou meu repúdio”
Tiago Aguiar // Especial para o Diário de Natal
Qual a sua atuação no caso Edinaldo Filgueira?
O caso Edinaldo Filgueira, além de ter-me chocado, por sua hediondez, despertou meu repudio, em decorrência de sua motivação política. Coordeno uma equipe de advogados, todos dispostos e comprometidos em atuar na condição de assistentes do Ministério Público, pela garantia de justiça no caso Edinaldo Filgueira, mas, também, para que a sociedade e o estado, a par de punirem os criminosos, possam desmantelar essa verdadeira rede criminosa, restituindo a segurança e a liberdade do povo da Serra do Mel.
Qual a relação pessoal entre os presos e acusados?
Os réus Rafânio Azevedo, Ranielly Azevedo e Daniel Azevedo são irmãos entre si e primos do Prefeito Bibiano Azevedo, enquanto a ré Cícera Soares viveu maritalmente com um irmão daqueles primeiros, até pouco tempo atrás, tendo permanecido com os vínculos familiares, políticos, negociais e delituosos. Há muitas evidências de que o grupo mantinha cumplicidade e co-autoriana pratica de vários crimes.
Quais as razões que levaram à prisão do prefeito de Serra do Mel?
Chamado para prestar declarações pelo Dr. Odilon Teodósio, delegado que presidiu o inquérito e o indiciou, a defesa do prefeito, surpreendentemente, ajuizou um Habeas Corpus ao Juízo de Primeira Instancia em Mossoró, de maneira que não deve ter sido surpreendido com a ordem de prisão. No momento da prisão, o prefeito Bibiano encontrava-se na sede do município de Serra do Mel.
Quem é o autor intelectual do crime, o que o motivou e quais são as provas colhidas que apontam o mandante do crime?
O momento processual não permite a exploração publica desses pontos, salvo o de que as provas demonstram que a motivação para o crime foi essencialmente política, no sentido de que a atividade jornalística de Edinaldo, somada a sua postura critica e sua militância partidária, representava uma ameaça aos projetos políticos do prefeito Bibiano, especialmente por desnudar, no “Blog” e no Jornal “O Serrano”, as irregularidades e falhas da administração do Município de Serra do Mel, embora sempre com direito de resposta.
Você tem conhecimento sobre eventuais perseguições sofridas por Edinaldo pelo prefeito, em outros momentos?
Alguns depoimentos de testemunhas deram conta de que Edinaldo vinha sofrendo ameaças, e o depoimento da ré Cícera, já em Juízo, corroborou essa afirmação quando disse, alegando um suposto insulto de Edinaldo contra a filha do Prefeito Bibiano, que o réu Rafânio Azevedo lhe havia pedido para conseguir o numero do telefone da vitima, para que pudesse ligar diretamente para ele.
Por que existem dois processos para um mesmo caso?
Infelizmente, nossa legislação, talvez pelos vínculos históricos entre muitos legisladores e os delinquentes ocupantes do Poder, estabelece foros de privilégios para muitas autoridades publicas, de modo que o prefeito Josivan Bibiano de Azevedo, indiciado como mandante do crime contra Edinaldo, livra-se do Tribunal do Júri para ser julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado.

Rio Pequeno do Norte: O estado da ilusão democrática



Quando os navegadores portugueses encontraram o estuário do rio Potenji, acabaram por batizar a capitania hereditária com o nome de Rio Grande do Norte. É um fato curioso e irônico, tendo em vista que em quase toda sua extensão o rio é tímido e acanhado, pouco caudaloso e até mesmo temporário, tendo real vigor somente no encontro com as águas do mar que invadem o continente.
Tal e qual os navegantes foram iludidos pela miragem de um grande rio que em real e concreto é apenas um riacho, as instituições republicanas dão hoje em dia a impressão que vive-se em um estado democrático de direito. Mas a nossa justiça apenas funciona para ladrões de galinha e pretos, pobres, traficantes pés de chinelo. Tendo dinheiro, estando no poder, se inocenta ou se prescreve – é a ilusão democrática.
Na Capitania do Rio Pequeno do Norte a liberdade de comunicação acaba nas armas em mãos de homens ferozes, quadrilhas de pistoleiros que refletem um moderno cangaço de aluguel. Nas últimas estações dois jornalistas foram assassinados nestas paragens, lembra a ANJ, enquanto em todo o Brasil este número foi de cinco. Talvez o órgão patronal não tenha dado conta que os jornalistas mortos no Rio Pequeno do Norte não serviam às empresas corporativas, eram independentes.
Foram eles F. Gomes e Edinaldo Filgueira, além de jornalistas, blogueiros, que desafiavam o sistema coronelista, que denunciavam a macro estrutura criminosa e que em idêntica condição foram assassinados por um grupo de pistoleiros vindos em motos, e a bala, na frente do local de trabalho, encomenda cumprida.
Destarte, as empresas corporativas em suas negociações trabalhistas com o sindicato dos jornalistas humilham a classe,sendo o Rio Pequeno do Norte o estado em que o menor piso salarial é pago aos trabalhadores da comunicação. Trabalhadores estes que em seu ofício recebem ameaças da própria polícia, como no caso da fotógrafa Ana Amaral, ameaçada por um PM que apontou uma arma para a sua cabeça enquanto a jornalista cumpria o seu ofício.
Saibam todos que no Rio Pequeno do Norte o prefeito Josivan Bibiano, preso como mandante do assassinato de Edinaldo Filgueira acaba de receber um habeas corpus do Tribunal de Justiça do Rio Pequeno do Norte.
Sejam todos bem vindos ao Rio Pequeno do Norte, terra de lindos sítios, povo acolhedor e hospitaleiro. Mas tomem todos os devidos cuidados com que se diz, se escreve, se bloga. O Rio Pequeno do Norte é um dos Estados da ilusão democrática.